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title: 'Como rejeitar o capitalismo: guia para esquerdistas'
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Para qualquer pessoa de esquerda. é incondicional rejeitar o capitalismo. Por
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outras palavras, qualquer pessoa de esquerda é também, por definição,
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anti-capitalista. Quero explicar porque é que ser de esquerda e apologista do
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capitalismo é um paradoxo.
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Conceitos, definições e opiniões sobre o que é o capitalismo e porque qualquer
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pessoa de Esquerda tem de ser anti-capitalista
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Proteção de local em obras, com um grafiti azul a dizer "SHUT DOWN
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CAPITALISM" (Desliguem o capitalismo). Parece ser de noite, mas o grafiti
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está iluminado com um candeeiro de rua. Foto de Marcel Strauß no Unsplash.
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*Nota: Este artigo está a ser escrito neste momento. Está *online* para poder partilhar com amigos e família.*
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# Introdução
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Ninguém deverá estranhar quando digo que sou de esquerda, (eco)socialista e anti-capitalista. O que talvez seja mais curioso é a quantidade de vezes que me vi enrolado numa conversa praticamente interminável com um amigo meu sobre economia, e mais especificamente sobre capitalismo. Este meu amigo é inteligente, tem experiência boa no mundo do trabalho, tem um *background* em gestão e estuda atualmente em Harvard. Mas há algo muito interessante sobre ele: diz-se de esquerda. As nossas discussões mais "intelectuais" (prometo que também conversamos sobre coisas interessantes) batem-se muitas vezes sobre sistemas económicos, políticos e tudo ao seu redor.
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Na última conversa que tivemos, chegamos a um impasse. Ele disse-me, de novo, que é inquestionavelmente de esquerda, mas também capitalista. Eu respondi-lhe "Isso é impossível", algo que ele, obviamente, negou. De certa forma fez-me lembrar o ex-Ministro da Economia e do Mar António Costa Silva, numa intervenção na AR: "\[...] relativamente ao lucro, eu acho que nós não devemos ter preconceitos, nem para um lado, nem para o outro. E o lucro é absolutamente fundamental. Já vi muitas experiências económicas no mundo, nenhuma funciona melhor que o sistema capitalista e o sistema capitalista tem na sua base o lucro. E o lucro é essencial porquê? Porque ele cria depois emprego, providencia o desenvolvimento das civilizações. \[...] A distribuição da riqueza é muito importante. Temos que ter sociedades coesas e proteger os mais vulneráveis, mas nós não vamos conseguir distribuir riqueza se não discutirmos também as condições para criar riqueza, e aí o papel das empresas é fundamental, elas são motores do desenvolvimento económico e, portanto, quem tem preconceitos contra o lucro, quem tem preconceitos contra as empresas não vai de certeza criar mais riqueza; vai criar, como as experiências, aliás, demonstram, mais pobreza."<Footnote>Aos 3:09:45: [https://canal.parlamento.pt/?cid=6265\&title=reuniao-plenaria](https://canal.parlamento.pt/?cid=6265\&title=reuniao-plenaria).</Footnote> Ou seja, tivemos o Ministro da Economia (e do Mar) do Partido Socialista (que este meu amigo argumenta que é um partido de esquerda), a argumentar a favor do capitalismo, contra a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua. Penso que este é um exemplo perfeito de pessoas de esquerda - ou, neste caso, a trabalhar para um Governo de esquerda -, podem defender o capitalismo. O próprio LIVRE tem na [sua declaração de princípios](https://partidolivre.pt/declaracao-de-principios-2-2) que é socialista, mas, ao mesmo tempo, é incapaz de fazer uma crítica profunda ao capitalismo como sistema económico, adotando linguagem como "capitalismo desregulado" ou "predador"<Footnote>Foi difícil encontrar o LIVRE a criticar o capitalismo, mas fizeram-no [no programa de 2014](https://partidolivre.pt/wp-content/uploads/2014/02/PROGRAMA-POLITICO-CONSOLIDADO_revisto_DB.pdf) e, na minha pesquisa, encontrei várias ocasiões onde o Rui Tavares se mostrava sempre contra o capitalismo "adjetivado" mas nunca contra o sistema económico em si. O seu blog tem vários exemplos, [este](https://ruitavares.net/2012/12/grandes-perguntas/) é apenas um deles.</Footnote>.
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## Porquê escrever este (longo) artigo?
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Dado o contexto anterior, deve ficar claro porque senti a vontade de escrever este artigo: quero explicar porque é que, na minha opinião, qualquer pessoa de esquerda tem, necessariamente, de ser anti-capitalista. Mas podemos perguntar ainda porque quero convencer o meu amigo (e não só) disto. Esse motivo, o mais fundo, é outro. Eu acredito que só depois de aceitar o capitalismo (sem adjetivações) como um sistema indesejável, pode uma pessoa de esquerda imaginar possibilidades dum outro sistema económico que quer ter. O discurso público sobre sistemas económicos e políticos é composto pelo conjunto de todas as nossas opiniões, e, no entanto molda-as ao mesmo tempo. A grande vitória do neoliberalismo foi, ao longo do século XX, ter hegemonizado as suas ideias de tal forma que limitou o espetro do que é possível dizer e pensar em política (e economia)<Footnote>Ver: [https://www.theguardian.com/news/2017/aug/18/neoliberalism-the-idea-that-changed-the-world](https://www.theguardian.com/news/2017/aug/18/neoliberalism-the-idea-that-changed-the-world)</Footnote>, sem ser apelidado de "extremista". Por outras palavras, o imaginário da opinião pública é continuamente confinado pelas vedações que nos são impostas pela ideologia dominante. Nada disto seria preocupante, claro, se essa ideologia não fosse uma das grandes causas de mal-estar da mesma população que a defende.
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Depois de libertada das "rodinhas" do capitalismo, uma pessoa ganha uma nova capacidade de imaginar novos sistemas, aceitar novas políticas e até ver o ser humano de forma diferente. Por este motivo, acho tão importante entender que esquerda (como ideologia política) e capitalismo (neste caso, como sistema socioeconómico mas também como conceito construtor de ideias e cultura) são antíteses, e não podem ser combinados. Com isto não quero dizer que apenas podem ser de esquerda pessoas anti-capitalistas, mas mais que, se alguém entende que é de esquerda, o passo imediatamente seguinte é entender também que rejeita o capitalismo.
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Conseguido este objetivo, o resultado não pode ser subestimado: o centro-esquerda, ou a "esquerda moderada" continua a existir, mas em moldes completamente diferentes. Não teríamos mais uma troca de argumentos no Parlamento em que um Ministro de um Governo do Partido Socialista tenta convencer uma deputada do Bloco de Esquerda e economista<Footnote>O facto de ser economista doutorada não faz com que a Mariana Mortágua esteja sempre certa, mas ajuda a entender que, se tem as opiniões que tem, não será, provavelmente, por falta de conhecimento.</Footnote> porque é que o capitalismo é o melhor sistema económico que temos, e poderíamos, quem sabe, ter um Parlamento onde a esquerda discute qual o nível certo para o IRS, quanto investir na cultura e como, em conjunto, travar o crescimento do CHEGA. Também "nas ruas" o ganho seria tremendo: as minhas conversas com o meu amigo poderiam deixar de ser sobre se PPPs são ou não de esquerda, e poderia começar a ser sobre como implementar de forma eficaz um programa de habitação pública abrangente.
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Poderão responder que é uma luta inútil, e que cada pessoa formará a sua própria opinião, que poderá ser tão variada quanto a sua personalidade e experiências. E, sendo verdade que cada pessoas terá a sua visão do mundo atual e do que quer para o futuro, também é verdade que a esquerda é caracterizada pela necessidade de união. Não será nenhuma parte da direita a preocupar-se com união ideológica e organização de movimentos. Para a extrema-direita, quanto mais dividas as sociedades, melhor conseguem atacá-las nos seus pontos fracos. Quanto à direita democrática<Footnote>Em Portugal representada pela IL, CDS e PSD, entre outros partidos e movimento sem assento no Parlamento.</Footnote>, continuam (erradamente) convencidos de que a cultura individualista que espalharam até hoje é sustentável<Footnote>No livro [Trolling Ourselves to Death](https://academic.oup.com/book/55929?login=false), Hason Hannan expõe de forma elegante como o modelo capitalista neoliberal apenas poderia resultar na sua implosão. Não pela vertente económica, como tentou prever Marx, mas pela vertente cultural.</Footnote>. Cabe, então, à esquerda entender que é na sua cooperação, tanto a nível parlamentar como na sociedade, que estará uma das chaves para a sua vitória sobre a direita, e, mais no imediato, sobre as tendências fascistas presentes<Footnote>Quanto à pergunta "Não estarei eu próprio a contribuir para a divisão da esquerda ao escrever este artigo?", a minha resposta é claramente "Não." Não podemos esquecer que a minha tese inicial, que está na origem deste texto, é que ser capitalista e de esquerda é um paradoxo, que fará qualquer pessoa, no melhor dos casos, confusa sobre onde se senta no espetro político, e, no pior dos casos, envenenar movimentos de esquerda por dentro, se sequer se dar conta disso. Eu argumento que ser capitalista não é o mesmo que ser a favor de um Estado maior ou mais pequeno (como é a discussão por exemplo entre comunistas e anarquistas), mas antes um facto inconciliável, como um prisioneiro pedir por piores condições na sua prisão: terá todo o direito de o fazer, mas gostaria de fazê-lo entender o erro comete.</Footnote>.
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## A estrutura do texto
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Para facilitar a leitura e estruturar os meus pensamentos, assim como os de quem leia o artigo, achei útil explicar como o vou estruturar. Para começar, a tarefa árdua, mas importante, de definir conceitos. Será nesta primeira secção que vou estabelecer o que é o capitalismo e o que é a esquerda. Esta tarefa, só por si, já daria duas teses de doutoramento em economia política e ciência política, respetivamente; ainda assim, darei o meu melhor a sublinhar as ideias mais importantes, para que possamos seguir em frente a partir de uma base comum. De seguida, mostro porque estes conceitos (capitalismo e esquerda) são incompatíveis, e porque ninguém que queira ser coerente ou ter uma conversa política consequente pode dizer que apoia os dois ao mesmo tempo. Por último, e não menos importante, tento convencer os leitores de que, depois de resolvido o paradoxo, podem finalmente começar a pensar sobre a sua "esquerdice" como um baú de possibilidades, e não como uma limitação.
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Para qualquer pessoa de esquerda é incondicional rejeitar o capitalismo. Por
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outras palavras, quero explicar porque é que qualquer pessoa de esquerda é
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também, por definição, anticapitalista, e porque é que isso é motivo para
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ficar contente.
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Conceitos, definições e opiniões sobre o que é o capitalismo e porque qualquer
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pessoa de Esquerda tem de ser anticapitalista
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CAPITALISM" (Desliguem o capitalismo). Parece ser de noite, mas o grafiti
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está iluminado com um candeeiro de rua. Foto de Marcel Strauß no Unsplash.
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*Nota: Este artigo está a ser escrito neste momento. Está online para poder partilhar com amigos e família.*
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# Introdução
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Ninguém deverá estranhar quando digo que sou de esquerda, (eco)socialista e anticapitalista. O que talvez seja mais curioso é a quantidade de vezes que me vi enrolado numa conversa praticamente interminável com um amigo meu sobre economia, e mais especificamente sobre capitalismo. Este meu amigo é inteligente, tem experiência boa no mundo do trabalho, tem um *background* em gestão e estuda atualmente em Harvard. Mas há algo muito interessante sobre ele: diz-se de esquerda. As nossas discussões mais "intelectuais" (prometo que também conversamos sobre coisas interessantes) batem-se muitas vezes sobre sistemas económicos, políticos e tudo ao seu redor.
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Na última conversa que tivemos, chegamos a um impasse. Ele disse-me, de novo, que é inquestionavelmente de esquerda, mas também capitalista. Eu respondi-lhe "Isso é impossível", algo que ele, obviamente, negou. De certa forma fez-me lembrar o ex-Ministro da Economia e do Mar António Costa Silva, numa intervenção na AR: "\[...] relativamente ao lucro, eu acho que nós não devemos ter preconceitos, nem para um lado, nem para o outro. E o lucro é absolutamente fundamental. Já vi muitas experiências económicas no mundo, nenhuma funciona melhor que o sistema capitalista e o sistema capitalista tem na sua base o lucro. E o lucro é essencial porquê? Porque ele cria depois emprego, providencia o desenvolvimento das civilizações. \[...] A distribuição da riqueza é muito importante. Temos que ter sociedades coesas e proteger os mais vulneráveis, mas nós não vamos conseguir distribuir riqueza se não discutirmos também as condições para criar riqueza, e aí o papel das empresas é fundamental, elas são motores do desenvolvimento económico e, portanto, quem tem preconceitos contra o lucro, quem tem preconceitos contra as empresas não vai de certeza criar mais riqueza; vai criar, como as experiências, aliás, demonstram, mais pobreza."<Footnote>Aos 3:09:45: [https://canal.parlamento.pt/?cid=6265\&title=reuniao-plenaria](https://canal.parlamento.pt/?cid=6265\&title=reuniao-plenaria).</Footnote> Ou seja, tivemos o Ministro da Economia (e do Mar) do Partido Socialista (que este meu amigo argumenta que é um partido de esquerda), a argumentar a favor do capitalismo, contra a deputada do Bloco de Esquerda Mariana Mortágua. Penso que este é um exemplo perfeito de pessoas de esquerda - ou, neste caso, a trabalhar para um Governo de esquerda -, podem defender o capitalismo. O próprio LIVRE tem na [sua declaração de princípios](https://partidolivre.pt/declaracao-de-principios-2-2) que é socialista, mas, ao mesmo tempo, é incapaz de fazer uma crítica profunda ao capitalismo como sistema económico, adotando linguagem como "capitalismo desregulado" ou "predador"<Footnote>Foi difícil encontrar o LIVRE a criticar o capitalismo, mas fizeram-no [no programa de 2014](https://partidolivre.pt/wp-content/uploads/2014/02/PROGRAMA-POLITICO-CONSOLIDADO_revisto_DB.pdf) e, na minha pesquisa, encontrei várias ocasiões onde o Rui Tavares se mostrava sempre contra o capitalismo "adjetivado" mas nunca contra o sistema económico em si. O seu blog tem vários exemplos, [este](https://ruitavares.net/2012/12/grandes-perguntas/) é apenas um deles.</Footnote>.
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## Porquê escrever este (longo) artigo?
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Dado o contexto anterior, deve ficar claro porque senti a vontade de escrever este artigo: quero explicar porque é que, na minha opinião, qualquer pessoa de esquerda tem, necessariamente, de ser anticapitalista. Mas podemos perguntar ainda porque quero convencer o meu amigo (e não só) disto. Esse motivo, o mais fundo, é outro. Eu acredito que só depois de aceitar o capitalismo (sem adjetivações) como um sistema indesejável, pode uma pessoa de esquerda imaginar possibilidades dum outro sistema económico que quer ter. O discurso público sobre sistemas económicos e políticos é composto pelo conjunto de todas as nossas opiniões, e, no entanto molda-as ao mesmo tempo. A grande vitória do neoliberalismo foi, ao longo do século XX, ter hegemonizado as suas ideias de tal forma que limitou o espetro do que é possível dizer e pensar em política (e economia)<Footnote>Ver: [https://www.theguardian.com/news/2017/aug/18/neoliberalism-the-idea-that-changed-the-world](https://www.theguardian.com/news/2017/aug/18/neoliberalism-the-idea-that-changed-the-world)</Footnote>, sem ser apelidado de "extremista". Por outras palavras, o imaginário da opinião pública é continuamente confinado pelas vedações que nos são impostas pela ideologia dominante. Nada disto seria preocupante, claro, se essa ideologia não fosse uma das grandes causas de mal-estar da mesma população que a defende.
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Depois de libertada das "rodinhas" do capitalismo, uma pessoa ganha uma nova capacidade de imaginar novos sistemas, aceitar novas políticas e até ver o ser humano de forma diferente. Por este motivo, acho tão importante entender que esquerda (como ideologia política) e capitalismo (neste caso, como sistema socioeconómico mas também como conceito construtor de ideias e cultura) são antíteses, e não podem ser combinados. Com isto não quero dizer que apenas podem ser de esquerda pessoas anticapitalistas, mas mais que, se alguém entende que é de esquerda, o passo imediatamente seguinte é entender também que rejeita o capitalismo.
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Conseguido este objetivo, o resultado não pode ser subestimado: o centro-esquerda, ou a "esquerda moderada" continua a existir, mas em moldes completamente diferentes. Não teríamos mais uma troca de argumentos no Parlamento em que um Ministro de um Governo do Partido Socialista tenta convencer uma deputada do Bloco de Esquerda e economista<Footnote>O facto de ser economista doutorada não faz com que a Mariana Mortágua esteja sempre certa, mas ajuda a entender que, se tem as opiniões que tem, não será, provavelmente, por falta de conhecimento.</Footnote> porque é que o capitalismo é o melhor sistema económico que temos, e poderíamos, quem sabe, ter um Parlamento onde a esquerda discute qual o nível certo para o IRS, quanto investir na cultura e como, em conjunto, travar o crescimento do CHEGA. Também "nas ruas" o ganho seria tremendo: as minhas conversas com o meu amigo poderiam deixar de ser sobre se PPPs são ou não de esquerda, e poderia começar a ser sobre como implementar de forma eficaz um programa de habitação pública abrangente.
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Poderão responder que é uma luta inútil, e que cada pessoa formará a sua própria opinião, que poderá ser tão variada quanto a sua personalidade e experiências. E, sendo verdade que cada pessoas terá a sua visão do mundo atual e do que quer para o futuro, também é verdade que a esquerda é caracterizada pela necessidade de união. Não será nenhuma parte da direita a preocupar-se com união ideológica e organização de movimentos. Para a extrema-direita, quanto mais dividas as sociedades, melhor conseguem atacá-las nos seus pontos fracos. Quanto à direita democrática<Footnote>Em Portugal representada pela IL, CDS e PSD, entre outros partidos e movimento sem assento no Parlamento.</Footnote>, continuam (erradamente) convencidos de que a cultura individualista que espalharam até hoje é sustentável<Footnote>No livro [Trolling Ourselves to Death](https://academic.oup.com/book/55929?login=false), Hason Hannan expõe de forma elegante como o modelo capitalista neoliberal apenas poderia resultar na sua implosão. Não pela vertente económica, como tentou prever Marx, mas pela vertente cultural.</Footnote>. Cabe, então, à esquerda entender que é na sua cooperação, tanto a nível parlamentar como na sociedade, que estará uma das chaves para a sua vitória sobre a direita, e, mais no imediato, sobre as tendências fascistas presentes<Footnote>Quanto à pergunta "Não estarei eu próprio a contribuir para a divisão da esquerda ao escrever este artigo?", a minha resposta é claramente "Não." Não podemos esquecer que a minha tese inicial, que está na origem deste texto, é que ser capitalista e de esquerda é um paradoxo, que fará qualquer pessoa, no melhor dos casos, confusa sobre onde se senta no espetro político, e, no pior dos casos, envenenar movimentos de esquerda por dentro, se sequer se dar conta disso. Eu argumento que ser capitalista não é o mesmo que ser a favor de um Estado maior ou mais pequeno (como é a discussão por exemplo entre comunistas e anarquistas), mas antes um facto inconciliável, como um prisioneiro pedir por piores condições na sua prisão: terá todo o direito de o fazer, mas gostaria de fazê-lo entender o erro comete.</Footnote>.
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## A estrutura do texto
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Para facilitar a leitura e estruturar os meus pensamentos, assim como os de quem leia o artigo, achei útil explicar como o vou estruturar. Para começar, a tarefa árdua, mas importante, de definir conceitos. Será nesta primeira secção que vou estabelecer o que é o capitalismo e o que é a esquerda. Esta tarefa, só por si, já daria duas teses de doutoramento em economia política e ciência política, respetivamente; ainda assim, darei o meu melhor a sublinhar as ideias mais importantes, para que possamos seguir em frente a partir de uma base comum. De seguida, mostro porque estes conceitos (capitalismo e esquerda) são incompatíveis, e porque ninguém que queira ser coerente ou ter uma conversa política consequente pode dizer que apoia os dois ao mesmo tempo. Por último, e não menos importante, tento convencer os leitores de que, depois de resolvido o paradoxo, podem finalmente começar a pensar sobre a sua "esquerdice" como um baú de possibilidades, e não como uma limitação.
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# Tentando definir os conceitos
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## Capitalismo
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A definição de capitalismo deu, ao longo da história, muitas voltas. Fernand Braudel aponta Louis Blanc como a pessoa que primeiro inventou o termo *capitalismo*<Footnote>Em [Conceptualizing Capitalism: Institutions, Evolution, Future](https://books.google.no/books?id=S5XICQAAQBAJ\&dq=what+i+call+%27capitalism%27+that+is+to+say+the+appropriation+of+capital+by+some+to+the+exclusion+of+others\&pg=PA252\&redir_esc=y#v=onepage\&q=what%20i%20call%20'capitalism'%20that%20is%20to%20say%20the%20appropriation%20of%20capital%20by%20some%20to%20the%20exclusion%20of%20others\&f=false), Braudel cita o livro [Organisation du travail](https://archive.org/details/organisationdutr00blanuoft/page/160/mode/2up) (p. 161) de Blanc: '\[...] onde Blanc (1850, 161) escreveu acerca da "falácia" da "utilidade do capital" ser "perpetuamente confundida com o que eu chamo de capitalismo, ou por outras palavras, a apropriação de capital por umas pessoas, em exclusão de outras.' \[tradução feita por mim]</Footnote>, mas menciona também Pierre-Joseph Proudhon, William Makepeace Thackeray e, claro, Karl Marx<Footnote>Marx usou ostensivamente os termos "modo de produção capitalista" e "capitalistas" (referindo-se a pessoas), mas muito pouco a palavra "capitalismo" em si.</Footnote>, entre outros. Após esse pequeno contexto histórico, Braudel explica como as definições mais comuns encontradas atualmente, como a da Britannica<Footnote>[https://www.britannica.com/money/capitalism](https://www.britannica.com/money/capitalism)</Footnote>, em muito coincidente com a da Infopédia, da Porto Editora<Footnote>[https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/capitalismo](https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/capitalismo)</Footnote>, que define capitalismo (em contexto económico<Footnote>Em contexto político define como "regime no qual o poder político está na dependência dos detentores de capitais"</Footnote>) "regime económico caracterizado pela propriedade privada dos meios de produção, pelo predomínio do capital enquanto elemento produtivo e pela existência de um mercado livre orientado para a obtenção de lucro", não são suficientes para caracterizar aquele sistema económico. Isto porque, realça Braudel, "sistemas largamente baseados na propriedade privada, no lucro e nos mercados, podemos encontrar muitos exemplos antes da era medieval." O que Marx trouxe de novo à discussão foi a adição de dois novos elementos — o trabalho salariado e as relações laborais — que nos deram um novo olhar sobre o mesmo sistema.
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Assim, Braudel oferece uma definição baseada em toda a sua pesquisa: um sistema de produção que tenha as seis seguintes características: (1) um sistema legal que suporte os direitos e liberdades de possuir, comprar e vender propriedade privada, (2) mercados e trocas de mercadorias, largamente difundidos, que envolvam dinheiro, (3) posse privada dos meios de produção por empresas que produzem e vendem bens ou serviços em busca de lucro, (4) a maioria da produção afastada e organizada separadamente da casa e da família, (5) disseminação de trabalho salariado e contractos de emprego e (6) um sistema financeiro desenvolvido, com instituições bancárias, o use generalizado de crédito usando propriedade como garantia e a venda de dívida.
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Em 2015, o IMF publicou um artigo<Footnote>Escrito pela economista Sarwat Jahan ([que foi em 2022 nomeada Residente Representante do IMF no Sri Lanka](https://www.dailymirror.lk/breaking_news/Sarwat-Jahan-now-IMF-Resident-Representative-for-Sri-Lanka/108-247627](https://www.dailymirror.lk/breaking_news/Sarwat-Jahan-now-IMF-Resident-Representative-for-Sri-Lanka/108-247627)>)): [https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/Series/Back-to-Basics/Capitalism](https://www.imf.org/en/Publications/fandd/issues/Series/Back-to-Basics/Capitalism)</Footnote>, com o subtítulo "Mercados livres podem não ser perfeitos, mas são provavelmente a melhor maneira de organizar a economia", onde é dito que 'A característica essencial do capitalismo é a motivação para gerar lucro. Como Adam Smith, o filósofo do século XVIII e pai da economia moderna, disse: "Não é a partir da benevolência do talhante, do cervejeiro ou do padeiro que podemos esperar o nosso jantar, mas da sua preocupação com o seu interesse próprio." Ambas as partes na troca voluntária têm o seu interesse pessoal no resultado, mas nenhuma pode obter o que quer sem ter em conta o que a outra parte quer. É este interesse próprio racional que pode levar a prosperidade económica.' \[tradução feita por mim]. Nesse artigo, o capitalismo tem os seguintes seis pilares: (1) propriedade privada, que permite pessoas terem bens tangíveis como terrenos e casas, e bens intangíveis como ações, (2) interesse próprio, através do qual as pessoas agem em busca do seu próprio bem-estar, sem consideração pelas pressões sociopolíticas; no entanto, estes indivíduos não coordenados acabam por beneficiar a sociedade como se fossem guiados por uma mão invisível (citando *Wealth of Nations* de Adam Smith), (3) competição, através da liberdade das empresas de entrarem e saírem dos mercados, maximiza o bem-estar social, isto é, o bem-estar comum de produtores e consumidores, (4) um mecanismo de mercado que determina preços de uma forma descentralizada, através de interações entre compradores e vendedores — os preços, por sua vez, alocam recursos, que naturalmente procuram a maior recompensa, não só para bens e serviços, mas também para salários, (5) liberdade de escolha no que toca ao consumo, produção e investimento — clientes insatisfeitos podem comprar produtos diferentes, investidores podem procurar projetos mais lucrativos, trabalhadores podem desistir dos seus trabalhos por melhores salários e (6) um papel limitado do governo, que protege os direitos dos cidadãos e mantém um ambiente ordeiro que facilita o bom funcionamento dos mercados.
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As duas definições acima (em conjunto com as muitas mais que são citadas nas suas fontes), ajudam a solidificar a ideia de que, mesmo cerca de 200 anos depois do seu começo, ainda não conseguimos chegar a um consenso sobre o que é o capitalismo. Isto mostra, também, a dificuldade geral de chegar a definições finais nas ciências sociais, da qual a economia faz parte. Permitam-me, por isso, acrescentar outras ideias que penso serem relevantes.
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Primeiro, é crucial entender que o capitalismo, ao longo do tempo, e talvez até mesmo desde a sua conceção, não é apenas um sistema económico; é, para além disso, um sistema social e cultural, espelhado em praticamente todas as interações que as pessoas (individuais e coletivas) têm entre si e com o mundo que as rodeia. Para isto, é necessário analisar o capitalismo não através da lente da *economia*, mas sim da *economia política*. A economia política estuda, com a participação de várias ciências sociais — economia, ciência política, sociologia, entre outras —, a interação entre pessoas e a sociedade, e entre os mercados e o Estado.<Footnote>[https://www.britannica.com/money/political-economy](https://www.britannica.com/money/political-economy)</Footnote> Se o fizermos, estaremos mais aptos a entender que o capitalismo é muito mais do que uma série de equações sobre procura e oferta, mas sim um modo de organizar a sociedade como um todo, assim como o imaginário de cada um de nós. Na sua tese de doutoramento, Timothée Parrique ajuda-nos a entender como é que a sociedade onde vivemos molda as nossas ideias políticas; não só aquilo que achamos bem, mas, na verdade, aquilo que achamos possível de todo<Footnote>[https://www.researchgate.net/publication/339844751\_The\_Political\_Economy\_of\_Degrowth](https://www.researchgate.net/publication/339844751_The_Political_Economy_of_Degrowth)</Footnote>. E não é apenas esta visão do "imaginário político", mas também, numa realidade mais imediata, o impacto que o capitalismo, em todas as suas formas (com especial ênfase no neoliberalismo), tem no nosso dia-a-dia. O cursos que escolhemos na universidade, os trabalhos a que nos candidatamos, a forma como nos relacionamos com amigos e amigas, como, quando e onde construímos uma família: todas estas coisas, e mais, estão sob a alçada do sistema capitalista, por vezes sem nos darmos conta disso. Claro, não é de estranhar; um sistema socioeconómico, ainda por cima um tão abrangente como é o capitalismo, teria sempre um impacto gigante nas nossas vidas. O importante a reter é que apenas quando nos apercebermos da influência que o sistema tem em nós, poderemos pensar melhor sobre as decisões que tomamos, as ideias que temos, e, mais importante ainda, se concordamos ou não com o sistema onde nos encontramos<Footnote>Se é verdade que nenhuma pessoa sozinha é capaz de mudar um sistema, também é verdade que a mudança, até sistémica, se consegue quando pessoas a implementam. Muitas terão sido aquelas que, ao acordar todos os dias na ditadura do Estado Novo, não imaginavam a possibilidade de viver o seu fim. No entanto, ele chegou, mais tarde ou mais cedo, pelas mãos (e cabeças) de pessoas que imaginaram esse fim.</Footnote>.
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